Autor
Eduardo Ricci
Ainda estou aqui, arte e resistência
Arte é também resistência, a arte nos salva. Esta é a mensagem que permeia o filme de Walter Salles que rendeu um inédito Globo de Ouro à atriz Fernanda Torres, por mérito pela interpretação magistral de Eunice Paiva, a viúva do ex-deputado Rubens Paiva cassado e morto pela ditadura militar brasileira. Além da confirmação do valor e da qualidade do cinema brasileiro, o prêmio comemorado como uma taça de futebol por boa parte da população, também foi uma cusparada na cara de todos os fascistas e especialmente do ignóbil Bolsonaro. Ele mostrou sua verdadeira face que inspira horror do ponto de vista moral, ao cuspir no busto de Rubens Paiva no dia da inauguração da homenagem ao ex-deputado na Câmara Federal. Vil, baixo, o inelegível posou ao lado de um cartaz: “quem procura osso é cachorro”. Os ossos de Rubens Paiva nunca foram encontrados, mas ficou provado que foi torturado e morto por agentes da ditadura nas dependências do DOI-Codi do Rio de Janeiro entre 20 e 22 de janeiro de 1971.
A prática da tortura, odiosa recorrência no regime militar, também foi elogiada por Bolsonaro, que saudou o torturador coronel Ustra ao votar pela cassação da ex-presidente Dilma, afastada do cargo por um golpe político no Congresso. Bolsonaro chamou Ustra de “o pavor de Dilma Rousseff”, por ter comandado as sessões de tortura contra a ex-presidente, presa e torturada durante a ditadura.
Como afirmou o colunista do DCM, Thiago Suman, “o prêmio é sim um marco civilizatório diante da fenda aberta pelo fascismo. Sim, a arte, inimiga mortal dos funestos ignorantes, aquela que resiste quando nossa voz nos falta, que nos representa e é, acima de tudo, uma trincheira de luta, retomou vitalidade com a queda do inelegível cuspidor”.
O filme mostrou a verdadeira face da ditadura militar brasileira, que infelizmente ficou impune depois de 21 anos onde torturou, matou e sumiu com os corpos de centenas de opositores. Se ao invés da anistia ampla geral e irrestrita o país tivesse responsabilizado e punido os militares e policiais criminosos da época, hoje não seria preciso prender um general e outros militares envolvidos na tentativa de golpe em 2022. As ações com apoio do ainda presidente Bolsonaro previam a eliminação física do presidente Lula, de seu vice Geraldo Alckmin e do ministro do STF, Alexandre de Moraes. É imperativo manter a punição destes golpistas e de todos que ousaram atacar as sedes dos três Poderes e especialmente a instância maior do Judiciário brasileiro, o Supremo Tribunal Federal. O único fator capaz de inibir os crimes contra a democracia é a punição exemplar, ou estaremos sempre sujeitos a novos atos de insânia da extrema direita brasileira.
O filme na verdade faz justiça a todas as vítimas do regime militar que desaparecem sem o rito da despedida, como Rubens Paiva, deputado federal pelo RJ cassado em 1964 por meio do Ato Institucional Número 1. Meus netos Pedro e Clara, adolescentes, viram o filme com os pais, e ficaram sabendo que houve uma ditadura cruel no Brasil, que prendeu, torturou e matou milhares de opositores. “Ainda estou aqui” devia ser exibido em todas as escolas para destacar a importância da democracia e mostrar o que foi a ditadura militar, defendida por milhares de bolsonaristas que acamparam diante dos quartéis após a vitória de Lula. Se fossem atendidos, sequer teriam direito de protestar nas ruas, seriam calados e submetidos sob a força das armas, sem direito a advogado, habeas corpus ou qualquer direito civil.
Com exceção de iniciativas como a Comissão da Verdade e a Comissão de Mortos e Desaparecidos, as atrocidades da ditadura passaram incólumes. E, como sabemos, o que não é punido está fadado a retornar e a se repetir, como constatamos na apuração das tentativas de golpe entre 2022 e 2023 e também nos patéticos pedidos recentes de anistia aos golpistas. Como bem disse o presidente Lula, também vítima da ditadura que o prendeu por liderar as primeiras manifestações de metalúrgicos em São Paulo, o filme deixa uma lição: “Ao reconhecer o trabalho de Fernanda Torres, o mundo também reconhece a importância de contarmos nossas histórias, não tolerando autoritarismos nem a violência”, disse Lula.
No dia em que relembramos com pesar o maior atentado à democracia brasileira desde o golpe de 64, é bom saber que a maioria dos brasileiros condena os atos golpistas do 8 de janeiro, e ao menos 50% acreditam na influência de Bolsonaro sobre os atos, conforme atesta a pesquisa Quaest, divulgada nesta segunda-feira (6). 86% dos brasileiros são contra os atos dos bolsonaristas que invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes. A desaprovação dos atos golpistas é patente mesmo entre os eleitores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), 85%, três pontos percentuais abaixo do constatado entre os que votaram no presidente Lula (PT).
Em dois anos de investigações, o STF condenou 371 incitadores ou executores dos atos golpistas do 8 de janeiro, entre os mais de 2 mil vândalos presos na ocasião. Que todos paguem integralmente por seus crimes, incluindo os mato-grossenses e entre eles o fascista que tentou incendiar um caminhão-tanque nas imediações do aeroporto de Brasília na véspera do Natal de 2022. Alan Diego Rodrigues, de Comodoro, foi um dos que arquitetaram o ato terrorista para provocar um clima de comoção social capaz de desencadear a decretação de estado de sítio e a intervenção militar. Ele colocou uma bomba num caminhão que carregava 60 mil litros de querosene e ia entrar na área do terminal. O Supremo ainda investiga organizadores e financiadores dos atos golpistas, incluindo membros da parcela fascista do agronegócio local. A Procuradoria-Geral da República já denunciou ao Supremo investigados que mobilizaram pessoas e financiaram o transporte até Brasília, além de terem custeado alimentação.
É preciso virar esta página infeliz de nossa história, e isso só vai acontecer com a punição exemplar de todos os envolvidos no 8 de janeiro de 23 e principalmente os mentores da tentativa de golpe em 2022, logo depois da derrota de Bolsonaro nas eleições. Anistia não, nunca mais. Dura lex sed lex, a lei é dura, mas é a lei. Ainda estamos aqui, apesar dos anos de chumbo, das torturas, da eliminação de pessoas, da retirada dos direitos civis, do fechamento do Congresso e da censura à imprensa. Por uma feliz ironia do destino no ‘aniversário’ de dois anos dos ataques à democracia, a parte sã do país está comemorando a vitória de Fernanda, que reviveu a bravura de Eunice Paiva e através dela recontou a história da ditadura militar (1964-1985). A democracia venceu, a arte, a cultura e o jornalismo resistiram e continuarão resistindo. Ainda estamos aqui. Fascistas não passarão!
Eduardo Ricci é jornalista em Cuiabá
* A opinião do articulista não reflete necessariamente a opinião do Arte e Fato